Solitário Surfista

Ou tubo ou nada

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“O chão é a parede e é o teto ao mesmo tempo”

Um dia eu cheguei em casa, ainda criança, e contei pra minha mãe que tinha feito uma descoberta muito importante, mas já lhe adiantei que talvez ela não fosse capaz de compreender aquilo muito bem. Ela sorriu curiosa. Qual seria a razão de tamanha euforia nas minhas palavras, o motivo daquele brilho diferente que eu trazia nos olhos?

É que eu tinha pegado o meu primeiro tubo, e a partir daquele momento, que deve ter durado dois ou três segundos numa onda de no máximo meio metro, eu descobri que havia dois tipos de pessoas no mundo!

Minha mãe, jornalista, sempre atenta a algumas frases diferentes que eu soltava de vez em quando, e com boa memória literária, guardou bem o que eu disse naquele incrível dia de revelação e me contou esta história dois meses atrás. Achei ótimo ela ter me contado isto no meio de uma reunião com um parceiro de trabalho que também é surfista, justo quando eu estava me preparando para uma surf trip.

Então eu vim contar também pra vocês. A grande verdade que eu tinha descoberto era a seguinte, ou melhor, a grande verdade que eu descobri há muito tempo é a seguinte: existem dois tipos de pessoas na face da Terra, as que já entubaram e as que não entubaram!
Minha mãe até riu, mas não duvidou do que eu dizia, enquanto eu seguia descrevendo o “visual” de dentro da onda, a sensação, a emoção e o prazer que, infelizmente, era impossível um indivíduo “do meu tipo de pessoa” fazer com que um indivíduo “do tipo de pessoa dela” entendesse através de palavras, sendo ela uma pessoa do tipo das que ainda não entubaram.
“Mãe, você tem que aprender a surfar. E você tem que pegar um tubo, mãe! Só assim você vai entender.”

Ela poderia ter seguido o meu conselho, tinha apenas 32 anos, e eu 12, mas não foi o caso, coitada, e até hoje não sabe o que é pegar um tubo.

Vale ressaltar que eu já tinha pego muitos tubinhos de bodyboard, nas marolas, aprendendo a pegar onda, pois já tinha um ano de “morey boogie” na bagagem, então não era a primeira vez que tinha visto uma onda por dentro. Mas surfar um tubo em pé (ou na verdade bem agachadinho), me impressionou de uma forma muito marcante e – poderia dizer pela minha reação – definitiva.

Realmente, desde a minha entrada no surf até hoje, mesmo apreciando as batidas, os cut backs e floaters, eu sempre me encantei muito mais assistindo a alguém fazer um bom tubo. Ou até mesmo um meio tubo, um tubo incompleto, fechado, que pra mim vale mais do que uma manobra, principalmente se for eu o surfista na onda. Não vamos tirar o mérito das rasgadas e dos aéreos acrobáticos, mas um tubo é um tubo, é outra coisa. O buraco é mais embaixo, a sintonia com a onda tem que ser total, quase perfeita. É o útero da Mãe Natureza nos acolhendo, e o nosso instinto de passar a mão no seu rosto, na face da onda, retribuindo o carinho. É sentir da forma mais intensa o poder e a energia daquela obra-prima formada por gotas de água que viajaram milhares de quilômetros pra explodir, e encontrar o único caminho possível pra quem se atreve a tentar passar flutuando por dentro de uma explosão. É penetrar no coração do mar aceitando seu convite mais belo e entregar à vontade do mar o nosso próprio coração acelerado e apaixonado.

Se o primeiro tubo que a memória apagou foi mesmo um divisor de águas na minha forma de ver e entender o surf, os tubos que peguei na minha última viagem à Indonésia, agora em junho, foram a recompensa do Universo por essa minha velha devoção aos “barrels”. Uma espécie de prêmio merecido pela atitude “go for it” e disposição que eu sempre tive de errar vários pra acertar alguns, conhecendo e aceitando todas as consequências que esses erros podem provocar.

No mar mais clássico e ao mesmo tempo intimador que eu peguei na vida, eu viajei no tempo e me vi com 12 anos de idade, não entubando na marola, mas sentado em frente a uma TV e um videocassete, sonhando com aquilo que agora estava virando realidade.

Nos filmes tinha muitas manobras, as mais ousadas possíveis na época, mas nada me fascinava tanto quanto os tubos de Pipeline, com seu inconfundível spray na saída, e aquelas magníficas cenas feitas de dentro d’água, em câmera lenta, coisa rara de se ver.

Estamos falando de uma época pré-internet, em que não era fácil ver imagens de surf filmadas na água. Não existiam as câmeras GoPro como hoje e lembro que ganhei de presente uma camerazinha amarela Minolta à prova dágua, que a gente tinha que secar e abrir com cuidado pra trocar o rolo de filme. Era o máximo! Eu a levava pro canto de São Conrado e me revezava com os amigos nas funções de fotógrafo e fotografado. E era bem mais divertido ser o fotógrafo. Olhava os tubos rodando enquanto furava as ondas e tinha vontade de tirar foto de todas, mas só podia fazer isso uma vez ou outra, já que o rolo de filme tinha normalmente 24 poses, ou no máximo 36, e esse era o total de cliques que poderiam ser feitos na sessão de surf de toda a galera!

E se nos videos de surf (e nas fotos das revistas) eu babava vendo os tubos de Tom Carrol, Derek Ho, Michael Ho e do grande mestre Gerry Lopez com seu estilo inigualável, também havia um surfista em São Conrado cujo estilo ninguém era capaz de imitar. Suas batidas de cabeça pra baixo de backside nas esquerdas eram quase inacreditáveis de tão fortes e tão rápidas, mas mesmo assim eu ainda ficava mais empolgado ao ver os tubos que ele fazia atrasando de lay back. Este surfista da Rocinha, chamado Carlos Augusto Muniz, apelidado na época de Suruba, assim como seu irmão Betinho Muniz e outros pioneiros dali como Gebara, Guto, Gilson, mais alguns da minha idade que já surfavam melhor do que eu, foram os responsáveis por me mostrar a beleza e o valor dos canudos líquidos em movimento – ao vivo e a cores, sem câmera lenta, reais e (o mais importante) possíveis de serem surfados por pessoas comuns como nós!

E após voltar a surfar no Cantão depois de alguns anos parado, vi um amigo de infância da Rocinha chegar com uma prancha quebrada, cheia de infiltração, faltando um pedaço enorme do bico, pra surfar num dia clássico. Era o Déo, que pegou com aquele “toco” a melhor onda do dia, um tubaço. Saindo da praia, escrevi o poema Surfista do Morro, que serviria para descrever mais ou menos o que eu senti e tentei explicar à minha mãe ainda menino, e o que qualquer surfista sente cada vez que sai de um tubo, seja no Kandui épico ou no “quintal” da sua casa.

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Carlos Augusto Muniz, o “Suruba” da Rocinha, um mestre nos tubos que inspirava o pequeno Gabriel. Foto: Arquivo pessoal.

“Descendo do morro, sorriso no rosto
A prancha no braço, a pressa no passo
Queimando descalço no sol carioca
Pisando no asfalto, driblando o cansaço

Se benze na água e sente seu gosto
Conversa com as ondas e busca um espaço
Sortudo, descobre um buraco e se entoca
No tubo, recebe de Deus um abraço

No grito abafado que sai do canudo
Mantendo o equilíbrio e pisando tudo
Na prancha barata quebrada no bico
Nascendo e vibrando, se sente o mais rico

Surfista do morro, saindo do mar
Voltando pra casa, saindo do lar
Andando nos becos, subindo a escada
De cabelos secos e alma lavada”