Espírito do Surf

Épica e inesquecível

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Kelly Slater e Gabriel Medina saem juntos da água, sem saber quem havia vencido a disputa, e aguardam o resultado em momento antológico. Foto: WSL / Ed Sloane.

 

Peço licença para ultrapassar logo os temas mais óbvios, como o melodrama que cercou a vitória do Owen Wright, o aéreo fenomenal do Italo e a urgência com que ele precisa aprender a administrar melhor as baterias, a soberba do John John Florence e a decepção gigante que foi Filipe Toledo. Cada um desses assuntos merece tempo de conversa. Por causa deles a etapa de Snapper Rocks foi imperdível. Mesmo tendo acontecido na noite de sábado, o que deve ter provocado alguma briga de casal por aí.

 

Mas vamos direto ao ponto, ao momento mais importante da etapa: a bateria épica entre Slater e Medina. O confronto foi um capítulo crucial na inevitável e iminente mudança de guarda na elite do surf.

 

Aos 45 anos, Slater recusa a aposentadoria. Está em excelente forma física e no auge da experiência em competição. Sabe como ninguém surfar uma bateria. Sabe intimidar o adversário. É o maior surfista da história e usa e abusa do título. Onze vezes campeão mundial com todos os méritos possíveis. Por muitos anos foi tecnicamente o melhor.

 

Antes do início da bateria, o melhor surfista do campeonato era Gabriel Medina, mesmo com o joelho machucado. Aliás, dadas as pancadas verticais nas partes mais críticas e a variedade de manobras de impacto no repertório, nem parecia que Gabriel estava contundido. Pelo surf apresentado até ali, era o favorito.

 

Para Slater, a bateria tinha significado profundo. Ele diz que está no circuito para ganhar um último título. Que pode, que quer. Nesse contexto, os escalpos mais valiosos têm nome e sobrenome: John John Florence e Gabriel Medina. É preciso mostrar manobras capazes de vencê-los. Mas parece que Slater não as têm mais.

 

O jogo começou na primeira onda com uma questão insolúvel. Foi interferência do Medina? Slater diz que sim, que não saiu do tubo porque Gabriel remou e deformou a onda. Era um tubo muito difícil.

 

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Gabriel Medina mesmo com o joelho machucado, abusa das pancadas verticais nas partes mais críticas. Foto: © WSL / Cestari.

  

É certo que a possibilidade de marcação de interferência contra Medina foi discutida. A polêmica sobre o assunto ainda vai durar. Os juízes decidiram não marcar. O argumento foi que Slater não passaria a onda. Não é um bom argumento. Foi um começo confuso.

 

O que se viu a seguir foi reflexo desse nervosismo inicial. Ondas fracas, notas baixas. Gabriel fora de sintonia e Kelly se esforçando demais, sem a espontaneidade necessária para causar estrago nas ondas que pegou. Kelly tinha um seis. Medina tinha um cinco. Pouco para os dois.

 

Faltando dez minutos, a bateria estava totalmente em aberto. Levava quem fizesse uma onda boa. Kelly liderava e tinha a prioridade. Usou-a para anular uma onda do Medina. A prioridade, nessa altura uma arma decisiva, passou para Medina.

 

Então, a menos de quatro minutos do final, Medina comete um erro grave ao remar numa onda ruim e devolver a prioridade para Kelly.

 

Duvido que alguém que estivesse vendo ao vivo não tenha na hora pensado “perdeu”. Perdeu para si mesmo. Agora não tem volta. Kelly vai segurar a prioridade até aparecer uma onda boa, se é que vai aparecer.

Bem, a onda apareceu, mas não para Slater…

Esses minutos finais estarão para sempre na história da WSL. Medina foi tão sensacional, ou mais, quanto seu amigo Neymar nos minutos finais daquela goleada contra o PSG.

 

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Kelly Slater busca manobras capazes de fazer frente aos implacáveis adversários com a metade de sua idade. Foto: WSL / Ed Sloane.

  

Em menos de um minuto remou em outra onda, obrigando Slater a usar de novo a prioridade, que voltou para Medina. Uma bela série apontou no horizonte e ele escolheu a melhor onda.

 

A rasgada que jogou água em Slater foi antológica. Ninguém gosta de levar água na cara daquele jeito. Imagine o undecacampeão mundial. Não me lembro de jamais ter visto Slater nessa situação. Foi um momento intenso.

 

Slater ainda conseguiu pegar a de trás e os dois vieram manobrando simultaneamente até o inside. A cena dos dois saindo da água juntos, sem saber quem havia vencido a disputa, também é antológica.

 

Subiram juntos no palanque e juntos viram as notas no monitor. Tudo gravado para a posteridade. O nove para Medina definiu o resultado. Foi a única nota excelente da bateria. O que quer dizer alguma coisa.

 

Medina acabou perdendo para o eventual campeão na semifinal. Seu auge no evento foi a vitória sobre Slater. Uma batalha com a intensidade dos momentos épicos e inesquecíveis.

 

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Gabriel Medina ao saber do resultado da bateria. Foto: WSL / Ed Sloane.

 

Felipe Zobaran
Formado em jornalismo e com uma passagem de 18 anos pela Editora Abril e também pela Azul - onde dirigiu as revistas Fluir, Showbizz e Interview.